domingo, 30 de março de 2008

Nos domínios da Aconcagua

Rochosa, austera, colossal; assim é caminho pela cordilheira dos andes que nos leva até à Aconcagua.

É cedo, ainda temos umas boas horas até chegar e sinto que o meu corpo já tem praticamente a forma de uma cadeira de omnibus, de tão acostumado que está ela.
Ao meu lado está um senhor. Tem uma boina preta por cima do seu cabelo branco e mais do que o peso da idade, tem a diginidade da sabedoria. Conversámos.

Confessa que é um profundo admirador da Paula Rêgo, explica-me coisas sobre as montanhas, as árvores, política externa, Argentina, Europa... Diz-me: "Los viejos, ya no pensamos en heroes, pensamos en comida!". Sorrio com o seu humor muito terno e afável.
Don Lorenzo.





Paramos na Puente del Inca, uma ponte de terra onde correm àguas escuras e sedimentares. Perto da ponte está uma igreja e ruínas de um hotel criado quando as linhas ferroviárias se começaram a construir. Contam-nos que uma avalanche fez desaparecer o hotel mas que estranhamente deixou a igreja, a poucos metros do hotel, intacta. Mal ouvem isto, umas senhoras de meia-idade, gritam em uníssono e entusiásticamente: "Ohhhhh... pero es milagro!!!"

Bueno.....


Graças ao choradinho que fiz , o guia da excursão deixa-nos ficar à porta do Parque Nacional daAconcagua de onde nos virá a recolher daqui a 2 horas . A verdade é que estou completamente viciada no "trecking".. não consigo passar mais de dois dias sem caminhar pelo menos 10 kilométros e ingerir valentes doses de pó!!

A Aconcagua em quechua significa "sentinela de pedra" e é apenas a maior montanha do continente americano e um dos monumentos naturais mais impressionantes que eu já vi. E não é apenas devido aos seus 6962 metros de altura....

Chamam-lhe o tecto da América. Eu olho e volto a olhar, observo as suas linhas, cores, a sua imponente calma, a sua gigantesca dimensão, escuto o seu silêncio e não sei que chamar-lhe... Sinto apenas a pequenez própria do ser humano e a imensa e monumental força da Natureza.

Depois de ter conhecido um Gigante de Gelo, agora estou dentro de Gigante de Terra e das Altitudes!



São vários os alpinistas que todos os anos desafiam a Aconcagua mas nem todos conseguem o prodigioso feito de subir até ao seu cume. Por isso, todos os anos, cerca de 20 alpinistas ficam na terra que lhe sorveu o sonho.
Passamos pelo cemitério andista onde reposam os alpinistas mortos.


Os meus companheiros brasucas acompanha -me. Têm um humor que me diverte muito e utilizam expressoes tipo "que juvenil!" e "não me faça pegar nojo de você!". Dizem que "Argentino é igual a Brasileiro - é folgado!" e quando chegamos ao Hostel, em Mendoza, pergunta ao Pablo onde é que se pode comer feijão com arroz. Gozo com eles - feijão com arroz na Argentina... onde é que já se viu??
Menos mal que consegui demovê-los e acabámos a noite num restaurante, a comer uma outra maravilha da natureza argentina: o Bife de Chorizo!




A Aconcagua é diferente de tudo aquilo que já vi.
E talvez porque sou mais "bicho" de mar que de montanha ou talvez porque a nossa maior montanha tenha 1993 metros, as referências que tenho para explicar este colosso são muito limitadas e reduzidas.


De qualquer forma, não há e nem se quer explicação. Estamos a 2560 metros de altura, o que é muito alto, e eu limito-me a vaguear respeitosamente por esta montanha inacessível e surpreendente...


E não sei porquê, lembro-me do Jorge Amado e das suas descrições de Yemanjá... Acho que a força da Aconcagua é semelhante. Ambas Divindades, Deusas, Rainhas, Poderosas Feitiçeiras... E todos aqueles, que queiram desafiar a imensidão do seu território e que se atrevam a entrar nos seus domínios sagrados, poderão ficar retidos para sempre nas suas entranhas....

segunda-feira, 24 de março de 2008

Entre cidades: Santiago e Mendoza

A entrada em Santiago não começou exactamente da melhor forma.
As viajeras definitivamente já não estão habituadas à cidade e a cidade a elas. Depois de caminhar durante umas 1000 quadras ( as unidades de distância utilizada nestes lados do mundo), viemos dar ao sítio onde incialmente tínhamos partido e aí encontramos um hostel: o Che Lagarto.

O Sebastian está na recepção e dá-nos a boas-vindas. Conta-nos que todos estão de ressaca porque ontem houve festa até as tantas. O Che Lagarto tem um ar muito cool: um pátio verde onde estão espalhadas várias mesas, uma enorme cozinha en tons de branco e preto e umas casa de banho em tons de amarelo e vermelho.

Olhar para o mapa de santiago e decidir que fazer, é tarefa díficil. A cidade é enorme, é imensa em tudo; tem 6,5 milhoes de habitantes e é a terceira cidade mais poluída da América Latina.
Os Santiaguinos orgulha-se da sua capital "europeia" e na verdade é como se estivéssemos numa capital europeia que nos é muito familiar: Madrid!

Passeamos pelo Parque Florestal, cujo nome talvez seja um pouco exagerado e enganoso. Afinal é apenas uma grande avenida com algumas árvores, mas daí a um parque florestal, convenhámos.. É mais parecido com a Avenida da Liberdade do que com Monsanto!!

Se há coisa que muito me impressiona por estas terras, é a quantidade de farmácias por metro quadrado. Há farmácias a cada esquina, e vendem de tudo: fraldas, cosmética, refrigerantes, bolachas, detergentes, livros... até medicamentos vendem!

Passamos por La Moneda, tiramos fotos à estátua do Allende e tentamos reconstituir nas nossas cabecas datas, cronologias e episódios da sangrenta história chilena recente. Num país onde se sente de forma clara o índice de crescimento económico e cujas políticas liberais ocupam todo o espaço (o que se pode verificar pela quantidade de cartazes que dizem "mira como chile progride") , a febril ânsia pelo progresso procura apagar as memórias de uma longa e sangrenta ditadura.

Ainda assim impressiona que no Chile não existam universidades públicas e que todos aqueles que querem ingressar no ensino superior sejam obrigados a contrair pesados empréstimos ad eternum ao Estado. Num país onde o recurso ao crédito parece única forma de sobrevivência...

Passeamos pelas Belas-Artes, pelo jardim de Santa Luzia (um verdadeiro pulmão no centro da cidade), pelo bairro da Bellavista - também chamado bairro boémio e por aqui resolvemos jantar. Não era um jantar qualquer, era um jantar de despedida... bem na verdade era um jantar de "até já"!

Depois de quase duas semanas a viajar juntas num registo muito intenso, despreocupado, em sintonia, seguimos caminhos diferentes: a Andrea vai para o Rio e eu para o norte da Argentina. Juntas partilhámos emoções, quartos, aventuras e a descoberta de um mundo distante.

A portuguesa e a catalã resolveram abrir os cordões à bolsa e escolheram um restaurante chamado Garlic, com um ar muito acolhedor. A meio da requintada refeição oiço algo familiar. Mísia. E ouvir Fado em Santiago do Chile, acende no meu peito a tão lusitana Saudade.

A saída de Santiago em direção a Mendoza constitui uma curta viagem.
Apenas seis horas - e sorrio com a descontraída condescendência que estas imensas distâncias sul-americanas que começam a inspirar.

A viagem decorre tranquila e confortável a bordo dos já tão conhecidos micros e que constituem uma forma bastante aceitável de passar a noite .
Sem qualquer sentimento de revolta ou irritação passo a fronteira.
Passo do guichet da Polícia Chilena para o guichet das Migraciones Argentinas e por sua vez para guichet da Polícia Argentina, não sem antes claro, passar pelo posto onde inspeccionam a bagagem... e tudo isto com uma tranquilidade tão irreprensível que faria inveja a Buda.

Nem mesmo o facto de chegar a Mendoza duas horas e meia antes da hora prevista (e diga-se que essa hora seria às 7h da manhã- o que na presente situação fazia alguma diferença) consegui abalar a minha calma convicção.
O segurança do Terminal vem ter comigo e recomenda-me cuidado com as minhas malas por causa dos "pendejos" que ali circulam.

O dia, ou melhor dizendo a madrugada, já nao tinha começado bem e teria tendência a piorar.

O Terminal de Omnibus, que está muito longe de ser um sítio agradável para se estar às 4h30 da manhã, seria o local onde inevitavelmente teria que voltar e passar muito tempo na messiânica tarefa de encontar um boleto, que finalmente me levaria ao norte.

Com o ânimo já um pouco frágil decido-me a conhecer a Mendoza, a cidade dos vinhos.

E o poderia ter sido um lindo passeio de bicicleta pelas vinhas e bodegas nos arredores de Mendoza, pode resumir-me a uma estrada de cheia de buracos, uma paisagem desinteressante, ter ingerido uma quantidade fenomenal de pó e de tubos de escape e para ajudar à festa, buzinadelas e piropos desagradáveis de camionistas que faziam razias impressionantes ao meu veículo velho e sem travões.

À noite, esgotada e sem esperança, valeram-me dois brasucas muito simpáticos que trouxeram música ao meu espírito e que com uma guitarra e acordes de samba, salvaram o dia!

sábado, 22 de março de 2008

Valparaíso, meu amor



Valparaíso ou Valpo como lhe chamam os chilenos, era um dos destinos mais esperados desta viagem. Por isso e por saber que as expectativas que sempre nos dificultam a tarefa de viver o presente e nos fazem ficar com uma sensação de dívida, procuro ignorá-las e esquecê-las.
Na verdade esse esforço não seria necessário. Foi amor à primeira vista, na exacta e real medida da expressão.

Desde logo uma estranha e forte familiaridade, que cresce na proporção da minha estadia aqui.
Quando me perguntam de onde sou e digo que sou de Lisboa, todos me respondem o mesmo: "Te sientes en casa, no?"

A verdade é que sim. Sinto-me em casa.
De forma inevitável e sem saber bem porquê, Valparaiso produz-me uma sensação de êxtase e de enamoramento. E não sei se é pela sua desordenada beleza, se pelo seu caos urbanístico, se pela sua louca arquitectura, se porque o Pacífico a abraça; se pelos seus 45 cerros , se pelos vários ascensores que nos transportam a vistas espectaculares e surpreendentes ou se é porque me faz lembrar de Lisboa.

E não sei se coincidência ou destino, às 17 da tarde passamos por um café que emanava tão boa onda que decidimos entrar. Chama-se Café Vinillo e viria a ser um dos sítio onde passariámos mais tempo.
O Ivan, o dono do Café, é um apaixonado pela cidade e transmite-nos essa febril atracção fatal. Conversamos sobre Chile, Portugal, Lisboa - sobre o que nos aproxima e o que nos separa.
Digo-lhe que Lisboa é a cidade das 7 colinas. Ele responde-me que Valparaíso tem 45. Risos.

À conversa vieram juntar-se o Pato, o Marco e Pelado. E a conversamos sobre globalização, futebol, fronteiras, nacionalidades e nacionalismos, literatura, cinema, ditaduras e minorias, pela noite dentro.



E não são apenas os elevadores, os eléctricos, o sol, a luz que me é tão próxima e tão familiar; são também as pessoas, e o sentimento nostálgico e melancólico que carregam, como se de um fado se tratasse...


E assim, apaixonei-me por Valparaíso.

Tenho que confessar que sou muito pouco original nisso. Muitos foram os artistas, poetas e escritores que procuraram esta cidade como inspiração e porto de abrigo.
Entre eles Pablo Neruda, que declarou o seu amor a este "puerto loco, este "disparate de ciudad" e onde diz que se caminharmos por todas as suas escadas, teremos dado a volta ao mundo.

No entanto, Valparaíso não é o que se pode chamar uma cidade linda, e suponho que é precisamente a sua imperfeição que resulta tão mágica e especial para quem a visita.
Valpo é sujo, é poluído, é labiríntico, é desordenado e apesar disso é considerado Património da Humanidade.
Amontoados de casas debruçam-se sobre as colinas, que em certos casos parecem desmaiar do peso que carregam, bairros boémios, casas com fachadas multicolores, impossíveis subidas...

Apanhámos o 612 ( que é como quem diz.. apanhamos o 28 ) que dá a volta aos 45 cerros de Valpo. Visitamos a Sebastiana, a casa onde viveu Neruda e tem este nome porque é uma homenagem a seu construtor, um Sebastian qualquer coisa, que Neruda dizia ser um poeta da construção.
Tentamos perguntar a um velhote qual é a paragem que temos de sair para ir para a praia. Mas da sua boca apenas com meia dúzia de dentes, sai um idoma completamente imcompreensível para o nosso entendimento.
Na praia, surpresa das surpresas, estava um velhote a vender bolas de berlim!
Compro duas.
Ouço a voz de Pessoa a dizer-me baixinho ao ouvido: "Come, pequena suja, come bolas de berlim, porque quando voltares ao teu país, seguramente a ASAE já as fez desaparecer...."




Hesito antes de mergulhar no Pacífico. Mas depois, confiante que a esta altura do campeonato já devo ter anti-corpos sul-americanos suficientes, e ao ver as crianças à minha volta desprecocupadas e felizes, ignoro os pacotes de iogurte, de plástico e outros adereços que boiam junto a mim, e mergulho!




Quanto mais exploro a cidade apercebo-me que o sentimento familiar que me transmite não está apenas relacionado com Lisboa. Valparaiso é uma cidade com muitas cidades dentro.
Cidade viajeira e viajante, é como um cocktail saboroso e múltiplo dos vários lugares por onde passei e vivi: Coimbra, Porto, Barcelona.
Depois de passar o porto, um flash de dejá vu, e memórias de Maputo, mais precisamente da Costa do Sol, despertam quando se avista o mar e as praias.


Muito mais se poderia dizer sobre esta cidade, se o estado não fosse o de enamoramento, daquele que por muito que se diga diz-se sempre pouco e que nos deixa mudos, sentimentais e desarmados.



"Para mi corazón basta tu pecho
Para tu libertad bastan mis allas.
Desde mi boca llegará
hasta el cielo
lo que estaba dormido
sobre tu alma."


Pablo Neruda



quinta-feira, 20 de março de 2008

Petrouhé, Petrouhé.. Osorno à vista!



Puerto Varas está longe de ser a cidadezinha de pescadores que nos falaram. Das duas uma: ou os pescadores de Puerto Varas enriqueceram muitíssimo e agora todos têm casas de luxo ou trata-se de uma estância veraneante onde a burguesia Santiaguina vem passar férias. E eu fico-me mais pela segunda hipotése.

Por essa razão decidimos escapulir-nos para outro lugar mais afastado da turba turística.

A caminho da Petrouhé, a paisagem e o número de casas por metro quadrado começa a alterar-se profundamente.
E ao entrar na baía de Petrouhé, recordo os versos desse grande cançonetista lusitano:

"Petrouhé, Petrouhé... Osorno à vista
Sou contrabandista de amor e saudade
E trago no peito a minha cidade...


Para além de tudo, Petrouhé está sob os domínios de um gigante, um gigante de fogo agora extinto: aqui repusa o vulcão Osorno.
Está muito sol, os caminhos não estão bem assinalados e os mapas não são grande espingarda, por isso perder-se ou enganar-se no trilho é algo muito comum. E... perdemo-nos, claro! E a caminhada de duas horas demorou seis. Quase que poderiámos estar dentro de um episódio do "Lost".





Se o seu fogo está extinto, já o mesmo não se poderá dizer da sua imensa beleza e encanto.
E começamos a subir para os seus braços...

A sensação de subir um vulcão é.... é de díficil descrição!
Ficámos enfeitiçadas, presas na teia do poderoso Osorno. Sem conseguir encontrar o caminho e sem conseguir sair daqui.



Rendidas e sem qualquer hipotése de fuga, fingimos perder o último micro para Puerto Varas, (onde, aliás tinham ficado todas as nossas coisas), ligamos para o hostel para fazer o choradinho das desgraças perdidas que não conseguiriam regressar hoje, e fizemos figas para conseguir um "poiso" para pernoitar.
Ficámos na casa de um dos guarda-parques, onde nos alugaram um quarto. O quarto em que ficámos era da sua filha e tinha nas paredes um poster do Papa e outro de um golfinho.
Procurei a relacção entre aquelas duas criaturas, uma em frente da outra, mas adormeci sem qualquer explicação plausível.

No dia seguinte acordar cedo e ir ver os Saltos de Petrouhé, cuja progenitora imaginei ser Iguaçu...


quarta-feira, 19 de março de 2008

A ilha dos Chilotes

Com a sensação de que saímos do barco mas que o barco não saiu de nós, experimentamos pisar terra firme.
O corpo é um imparável pêndulo e tudo parece mover-se: o terminal de omnibus, a farmácia, o Banco, o supermercado... A Andrea diz que "llebamos el mar adentro" - o que é a mais pura verdade.
E, balaceando o corpo ainda com uma profunda ressaca do barco, aterramos na ilha de Chiloé.

Talvez porque não tivessemos expectativas ou talvez porque a beleza deste sítio é única e surpreendente, rapidamente nos deixamos envolver pelos encantos da ilha mágica.



Em Ancud alugamos um carro que nos permitiu dar a volta à ilha.
Durante 24horas, o carro foi a nossa casa,companheiro de viagem, meio de tranporte: nele comemos,passeamos, dormimos.

Sintonizei o FM mais perto de mim, a minha "frequência" preferida que me acompanha em todos os momentos da viagem, e a banda sonora não podia ser mais adequada; Tom Waits, Vinicius de Moraes, Caetano e Susana Bacca encaixam como "ginjas" na deslumbrante paisagem chilota.

A viagem até Puñihuil não podia ser mais idílica.
Estradas de terra batida onde a soberania pertence unicamente às vacas e bois que marcam a velocidade da viagem.
Paramos numa praia. Deserta e selvagem. Eu, a Andrea, gaivotas e albatrozes.
Atrás das dunas, algumas vacas pastam tranquilamente.

A viagem a Chiloé é uma especie de retorno, de regresso ao passado, ao que ainda é autêntico, genuíno, ancestral,selvagem.
É um regresso a uma inocência, a uma simplicidade primordial, ao que hoje já quase não existe.
E ao cansaço do corpo e das àguas, veio juntar-se um cansaço do excesso de beleza, uma quase dor de olhos, do tanto que a vista tentava abarcar e reconhecer.

A chegada à baía de Puñihuil não era mais do que a síntese de todo o caminho: uma natureza em estado bruto, genuíno e virgem. E um Pacífico azul e gelado enquadrava a baía com uma leve ondulação.

Depois da passagem por uma Patagónia que eu queria mítica, mas que a globalizante economia tornou apenas turística, a ilha de Chiloé foi um "regalo" para os sentidos.

Existe algo nesta terra que me lembra "o meu país do sul" mas há 20 anos atrás; as praias selvagens e desérticas, as bilhas de leite à porta das casas, praias e campos agrícolas colados um ao outro, os barcos de pesca puxados por bois na praia da Torreira, as praias do sudoeste alentejano antes de se tornarem ponto de fuga dos lisboetas...

A baía de Puñihuil para além de ser uma praia soberba é também o local onde centenas de pinguins, todos os anos escolhem para a época da reprodução. Existem colónias de dois tipos de pinguins: o pinguim de Humbolt e o pinguim de Magalhães.
E munidas botas e de coletes, fomos num barco de pescadores conhecer a espécie.



Digámos que "fofo" é um adjectivo redutor e limitado quando se está a falar de pinguins. Se existir alguém que tenha indiferença por este animal, é porque o animal é ele!
Com passos pequenos e concisos e com um ligeiro e delicioso movimento de cabeça, os pinguins aqui estacionados caminham em direcção aos buracos, onde estão guardados os seus ovos.
Ali, protegidos dos olhares furtivos dos seus predadores, como é o caso das gaivotas dominicanas, ficam até nascerem. As pinguinas põem em média 2 a 3 ovos por ano.

Explicam-nos que os pinguins começam a chegar em Dezembro e partem em Março para terras mais a norte e que são monogâmicos até à morte. E não é uma metáfora nem uma força de expressão; se se dá o caso de morrer a sua fêmea, vão para o alto de um precipicío e suicidam-se...!
Óóóóó... que criaturas mais românticas!!! Morrem por amor... Ai, ai!!....

Dissemos adeus ao Pacífico e aos pinguins de Puñihuil e fomos em direcção de Castro, a cidade maior de Chiloé. E por detrás de palafitas, assistimos ao pôr-do-sol.
Para além das centenas de palafitas existentes em Castro, uma outra peculiaridade desta ilha, são as igrejas de madeira, consideradas Património da Humanidade. A maioria delas foi construída no século XVIII e XIX e constitui um importante legado das ordens Franciscana e Jesuíta.
Consta-se que houve um problema de comunicação entre os que esboçaram as igrejas - europeus - e entre quem levou a cabo a sua construção - índios - que comprenderam "madeira" em vez de "mármore" e graças a esse mal-entendido temos igrejas que por fora são azuis, verdes, brancas, e por dentro totalmente revestidas de madeira.







A terceira e última cidade que visitámos foi Chonchi, com a qual desenvolvemos uma grande estima e carinho.
A afeição foi tanta que eu e Andrea começamos a utilizar o nome para tudo, como substântivo, adjectivo ou verbo: "Ei Chonchi, para donde vamos?" ou "Que chonchi es esta iglesia!" ou ainda " Estás choncheando?". De tal forma que quase gastámos o nome o cidade.

A baía de Chonchi parece um quadro de Monet, as cores, os o verde das algas,dos prados, o azul-prateado-esmeralda das águas, barcos e pescadores.

E nesta ilha que derreteu o nosso coraçao e restabeleceu os conceitos de beleza, devolvemos o nosso YE-44-66, e partimos errantes como qualquer mochilero que se preze, e continuamos a nossa rota ao sabor do vento!



sexta-feira, 14 de março de 2008

4 dias, 4 noites



4 dias, 4 noites é o tempo que demora o barco da Navimag de Puerto Natales a Puerto Montt.
Avisa-se a tripulação da Bifana no Paraíso que mudámos de país. Estamos no Chile, quele país muito estreito e muito comprido.

E foi também aqui que me encontrei com a Andrea. Na verdade deveria dizer que foi aqui que me desencontrei (muitas vezes!) com a Andrea, e apesar das telecomunicaçoes argentinas terem atrasado o encontro, ele deu-se.
E juntas embarcámos, no sentido mais lato da palavra.
Os companheiros de viagem não se procuram, encontram-se. E sobre isto nada mais há a dizer.





A bordo do Evangelistas só se ouve o motor.

No primeiro dia a bordo, a novidade e a excitação rapidamente se gastou e se converteu em rotina e melancolia. Chove. Aninho-me na minha cama na parte de cima do beliche, que tem umas cortinas bordeaux muito monas. Lá fora tudo é água.

A viagem de barco é uma espécie de viagem dentro da viagem.
O tempo é ditado pelo mar, num andamento allegro ma non troppo, compassado e sem pausas. É o ritmo das águas que organiza o tempo e que compoem a viagem.
A nós resta-nos apenas o papel de espectadores passivos da passagem desse Tempo. Aqui são as pessoas que tem de se adaptar a essa tranquilidade impassível, quase monótona e de uma felicidade quase imperceptível. A velocidade, a pressa, o stress são palavras que rapidamente se desaprendem.
Acelerada como sou aprendo a aceitar esse tempo. Procuro disfrutar do trajecto, da travessia, da viagem.
Viaja-se sem regresso, de um ponto geográfico para outro, viaja-se de dentro para fora e vice-versa, de forma recíproca e proporcional ao que se vê para fora e desde dentro.Mais do que os destinos, aqui o que importa é a rota, a travessia.
E assim os destinos fazem-se desejar, porque estão longe, porque são inacessiveis, porque demoram, tardam, fazem-nos esperar ( e concluo que a minha viagem até Usuhaia, apesar de massacrante teve o tempo justo... quem é que quer chegar numa hora ao fim-do-mundo?). É o estimulante das viagens, que nos faz confrontar com diferentes níveis de desconforto, estranheza e adaptação. E não é apenas porque é matéria desconhecida senão porque muitas vezes somos estrangeiros de nós proprios.
E assim se improvisam rotas, se reinventam destinos, se experimentam meios de comunicação e se desmultiplicam os mil e um alter-egos que vivem dentro de nós.






Os ritmos e os horários seguem o sol e é ele que regula a vida dos tripulantes a bordo e que define o ciclo dos acontecimentos e do quotidiano.

O nascer do sol e o pôr-do-sol contituem os momentos mais altos e mais emocionantes do dia. Ver o sol a sair do canal Poluche - ora aqui está uma imagem inesquecível.


O filme de hoje não podia ser mais adequado:"Diários de Motocicleta". Ver de novo este filme e vê-lo aqui ganha uma outra dimensão, mais próxima. Desta vez estou deste lado, reconheço lugares, sentimentos e inquietaçoes que à mistura com a possibilidade da realizaçao de sonhos antigos e de epopeias que julgávamos impossíveis, desdobram sorrisos.

O barco segue tranquilo, a uma velocidade estável e constante.

A vida a bordo é feita de pequenos nadas, acontecimentos insignificantes, detalhes mínimos que distraem a monotonia náutica. Passamos por alguns glaciares, por vários canais, vegetação surpreendente, ilhas. Desembarcamos em Puerto Éden, que é uma espécie de ilha perdida no tempo.


São 12h30 e ouve-se alto e em bom tom a voz da Aline, que diz que o comer já está na mesa. Horários de abuelitos- sentencia a Andrea.




Depois de um dia inteiro de chuvas, saiu o sol e com ele toda a tripulação para o convés.
O sol bate no mar, brilha e reflete nos olhos e no corpo de quem o recebe como se fosse uma benção, um milagre.

A bordo do Evangelistas não há muito que fazer. O tempo passa devagar, despreocupado.
A vida é fácil e simples. Dizem-nos quando temos que comer, quando temos que dormir, quando temos que acordar, que o filme ver ... - como se fossemos crianças, diz a Andrea.







Passamos por um barco abandonado. É o barco do capitão Leónidas. Em 1963 este capitão que fazia transporte de açucar preparava-se para dar o golpe à companhia de seguros. Vendeu o açucar e chocou contra uma rocha para provocar o naufrágio. Sabia que o açucar se dissolver-se-ia na água, mas quando a companhia de seguros lhe perguntou pelos pacotes onde açucar vinha embalado, o capitão vacilou - não tinha previsto esse "pequeno pormenor". Resultado: a companhia de seguros não pagou um tostão ao Leónidas e o barco permanaceu encalhado na rocha onde tinha chocado. Hoje faz parte das cartas de navegação e exerce a função de farol.

Feliz e de-leitada (isto porque estou deitada e leio ao mesmo tempo!) recebo o sol do lado esquerdo e vento do lado direito.
Não fosse a voz monocórdica da Aline a repetir várias vezes por dia:"pasajeros, vuestra atención por favor" e o barco possuir uma maioria anglo-saxónico-americana, e tudo seria praticamente perfeito.

Leio Chatwin. Num capítulo sobre Puerto Deseado e a propósito de pinguins, detenho-me numa frase: "Será que também nós possuímos viagens programadas no nosso sistema central? Talvez seja a única forma de explicar a nossa agitação doentia".









Todos os temporários habitantes do Evangelistas estão cá fora: bebem cerveja, jogam xadrez, apanham sol, leêm, ouvem música, observam com binóculos os arredores.


Curiosamente a parte mais intranquila da viagem dá-se quando entramos no Pacífico, que diga-se de passagem de pacífico não tem nada - só o nome - e quem lho deu, duvido muito que o tenha conhecido neste estado.
O comprimido drama-mini faz com não esteja muito enjoada mas en cambio dá-me uma solência tão profunda e tão exagerada, que adormeço no bar, no meio de corpos e de garrafas de wishky a partirem-se... enfim um mundo mundo inteiro a desmoronar-se sobre a minha cabeça e eu mal conseguia abrir um olho.

O jantar é servido num clima de grande instabilidade e precariedade horizontal.
É impossível não rir. De repente os 160 tripulantes do Evangelistas parecem que ficaram de um momento para outro completamente bebêdos e fazem grandes e descontrolados "zss" para se deslocarem.





São 21h30, é cedo mas os comprimidos impoem a ida para cama.
Esta noite dorme-se sobre a rota ocêanica e enquanto o Pacífico embala frenéticamente o meu corpo, que dança na cama, eu adormeço com a barriga em círculos intermináveis e com um largo sorriso que ultrapassa a cara.

E a voz do Chico, sussura-me das águas: "navegar é preciso, viver não é preciso..."



quinta-feira, 13 de março de 2008

Welcome to Calafate City!

São os desejos da hospedeira da LanChile.
A viagem até El Calafate é feita de avião porque só a ideia de ter de voltar outra vez pela tortura das quatro mil alfândegas, matava-me!

Pela janela, a visão é impactante. Um enorme lago azul de origem glaciar, que penso tratar-se do Lago Argentina, acompanha o meu caminho até ao centro da cidade.
É de um azul límpido, tranquilo e meigo - muito parecido com aquele que existe nos olhos do meu pai.

Estou aproxidamente a meio da minha viagem e sinto que algum cansaço subtilmente se começa a instalar no corpo. Depois, a fauna e o ambiente dos destinos muito turísticos, fazem com que seja impossível não nos sentirmos apenas como turistas. Com o respectivo câmbio para euros, doláres, pesos (não importa a moeda de transacção) aqui todos somos "carne para canhão".

E tudo isto faz com que se abata sobre a patanisca, uma espécie de crise. De fragilidade, de cansaço, de desilusão, de tristeza.
Um café com uma frase do Borges à entrada, serve de porto de abrigo para a viajante em crise.
Julgo ser este o café dos livros que vinha na lista de recomendaçoes da Ilda.

Obviamente a passagem por El Calafate tem apenas um objectivo: ver o glaciar Perito Moreno.
Não é o maior dos glaciares que existe no Parque Nacional dos Glaciares, mas é o mais acessível e o único com o qual se pode ter um encontro têtê-a-têtê.





O nome do glaciar é uma homenagem a um expert em geografia e que foi o responsável por traçar as fronteiras com o Chile: Francisco Moreno.
Moreno apesar de ter declarado este território como zona protegida e Parque Nacional, em 1837, na verdade nunca chegou a ver o glaciar.
Imagino a cara da pessoa que terá visto este glaciar pela primeira vez. Consta-se que foi um chileno (tarde demais! - terá pensado - mas as fronteiras já estavam definidas!)





O encontro com o glaciar Moreno é uma espécie de encontro em 10º ou em 11º grau.

A única comparação que me vem à cabeça para explicar a sensação que é ver este imenso gigante, é parecida com a emoção de assistir a um jogo da selecção nacional nas finais do campeonato mais importante do mundo. Claro que os "golos" são os despreendimentos. A metáfora é pobre, mas é a possível...


Ao contrário do que se poderia pensar, apesar da multidão ansiosa e maravilhada que divide este espaço, há um silêncio imenso e concentrado. Está toda a gente atenta. Deliciada e atenta. Não vá dar-se algum despreendimento e que isso escape à máquina fotográfica ou à visão.





Antes de o ter visto, já o tinha conhecido através dos vídeos da minha mãe, através das cartas de amor da Ilda, através de descriçoes de amigos, de livros... mas nada é comparável à sensação avassaladora de o ver de perto, de muito perto.


E não há palavras, adjectivos, superlativos que expliquem ou descrevam este fenómeno natural.
Ele existe. Simplesmente.
Respira, muda de cor, enfeitiça, envolve-nos. Deixa-se cair, deixa-se admirar - como alguém seguro da sua grandeza.
Aqui qualquer descrição, qualquer imagem seria redutora e por isso inútil.
Talvez as palavras e as fotografias sejam ainda insuficientes para explicar certos momentos da nossa vida. Talvez porque, em certos casos nao existe explicação nem tradução.
Existe apenas uma contínua, maravilhada e exacerbadora contemplação da beleza!

E com esta sensação de impossibilidade da comunicação vejo o glaciar afastar-se lentamente dos meus olhos.







quarta-feira, 12 de março de 2008

Nas terras do fim do mundo






De mochila às costas, caminho na direcção do hostel.
São 21h e ainda falta para ficar de noite. Está um entardecer suave e lânguido.
A temperatura nem cálida nem gélida.

Toca o telefone. Grito:
- Momy, estou no fim do mundo!!!!


Por um lado, qualquer sítio depois do autocarro me parece ser o melhor sítio do mundo; por outro qualquer sítio depois do hostel do Augusti me parece ser o pior sítio do mundo.

O Hostel Torres del Sur está afastado do centro. Tem um ar simpático e acolhedor e grandes vistas para a baía de Ushaia, mas tem regras e horários demasiado estritos.
A cidade tem este nome, Usuhaia, porque em Yámana significa " baía que se estende para o poente".

Os Yámanas eram um dos povos indígenas nómadas que originalmente habitaram a Terra do Fogo, e que tem este nome porque quando por aqui passavam os barcos de expediçoes, viam sempre fogueiras acesas.
Quem as mantinha acessas eram os Yámanas para os proteger do frio e para cozinharem os alimentos.

Yámana, segundo Thomas Bridge (que se dedicou durante anos a escrever o dicionário Yámana) como verbo quer dizer: "viver, respirar, ser feliz, restabelecer-se de uma doença ou ser são".
Por ironia do destino a extinção deste povo indígena foi precisamente a antítese do nome que usavam. Vítimas de epidemias várias, relacionadas com a tentativa das missoes anglicanas que em 1871 aqui se estabeleceram de "civilizar" os índios, morreram milhares de Yámanas.

Por volta de 1900 alguém decide que este é o sítio ideal para construir um prisão de alta segurança. Foram vários os presos "famosos" que por aqui passarsam: Carlos Gardel, Simon Radowizky e o conhecido "assasino do prego", que matou bárbaramente dezenas de crianças. Consta-se que foi devido ao mórbido prazer que tinha em assistir aos funerais das crianças que havia matado, que foi descoberto. Surpreendido por não ver a arma do crime, durante um dos funerais, perguntou: "Y el clavo?".


"A cidade mais meridional do planeta", "o lugar mais remoto da terra", "o extremo mais austral do mundo", são vários as denominaçoes que Usuhaia se dá a si própria. Se lhe tivesse que chamar alguma coisa seria"a cidade com mais marketing do mundo".
E não sei se é pelo excesso de slogans e de superlativos se pelo excesso de aproveitamento (ou devo dizer exploração??) turístico, mas para mim Usuhaia foi (e por dizê-lo de alguma maneira...) a maior desilusão do mundo!!!

Enormes contentores, casas pré-fabricadas, um urbanismo feio e desordenado, lojas e mais lojas, agências de viagens e cafés que têm escrito na montra coisas como: "Café de la Esquina - desde 1993"! Uma variedade exagerada de excursoes para todos os gostos e carteiras que pretendem proporcionar ao viajante um experiência inesquecível do fim-do-mundo. Não a terá.
Penso: "como é que puderam fazer isto ao fim-do-mundo?"

Restabelecida do choque e com as expectativas de volta ao ponto zero, resolvo-me a explorar melhor a Terra do Fogo.



De novo são as pessoas que encontro que voltam a fazer a diferença na forma de sentir um lugar e de novo a multiculturalidade é uma constante que se faz sentir.
De mochilas às costas e devidamente abastecidos de comes e bebes, uma portuguesa, um austriáco, um australiano, um alemão e um basco partem para o Parque Nacional da Terra do Fogo - eu, o Martin, o Mark, o Timo e o Álvaro!
Cenários lindo, fotogénicos e paradisiácos desfilam pelos olhos de quem conhece pela primeira vez algumas das tonalidades que a natureza pode produzir!
Entre senderos, baías, cerros, bosques, lagunas, turvales, percorremos cerca de 30 kilometros.

No dia seguinte a caminhada ao Lago Esmeralda foi igualmente puxada mas o resultado não podia ser mais compensador....






Á noite no Hostel, "alguém" armado em Máma italiana de , resolver fazer uma paella para la famiglia de 4 ragazzos que comem por 8. Com a ajuda de algumas guitarras houve festa e até a rígida administração do hostel não conseguiu resistir ao charme desta ruidosa famigli deixando que a festa se alargasse até tarde.

terça-feira, 11 de março de 2008

Não sei se chamar-lhe viagem ou massacre...

- Que parte de "no se puede entrar con frutas", no compreendió, señorita ??

O tom do motorista é sério, repressivo e duro.

Ela responde em voz baixa:- " pero eran sólo 2 manzanas..."

Este episódio reflete a paranóia chileno-argentina das fronteiras.
Nas quatro alfândegas pelas quais tivemos que passar o tempo de espera é infinito e absurdo.
Para além das horas de espera, obrigam-nos a preencher um monte de papelinhos alfandegários, revistam malas e investigam bagagens em busca de produtos de origem vegetal ou animal. A febre aftosa e outras coisas que tal, parece afligir de sobremaneira os Gendarmes Chilenos.

Num autocarro desconfortável e (des)governado por dois condutores muito broncos, faz-se a última parte da viagem: Rio Gallegos- Usuahia.
Durante todo o trajecto um "pi-pi-pi" irritande soa de cada vez que o motorista ultrapassa os 90 km/hora, o que diga-se de passagem, acontece com alguma frequência.

Respiro e suspiro. Suspiro muito. Para os que me conhecem bem sabem perfeitamente o que isso quer dizer: "Estou aborrecida!! Muito aborrecida!!"
Mas aqui ninguém parece comprender isso. Faltam os sorrisos cúmplices e amigos que recebem os meus suspiros múltiplos de forma graciosa e generosa. Faltam cá vocês!....

Reclamo muito. As burrocracias irritam-me até ao fundo da minha alma. O condutor acusa-me de ser demasiado reivindicativa.

Já na ultima das fronteiras, e entre a fila de entregar o passaporte e receber o passaporte, o único pensamento que me vem à cabeça é uma espécie de agradecimento: "Obrigada Jacques
Delors!!! Obrigada Comunidade Europeia por não nos fazerem passar mais por isto!!!"

Lá fora, o que os olhos devoram não tem qualquer referência com nada que tenham visto anteriormente, por isso é de difícil descrição.


Dois dias de viagem, intermináveis esperas trans-fronteiriças, 2000 e algo kms percorridos, cruzar quatro províncias (Rio Negro, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo), passar por extensoes imensas de planicíes desérticas que se prolongam no infinito, 39 horas de viagem e atravessar o estreito de Magalhães... fazem-me ter a certeza de que não me enganei.
Chegámos ao fim do mundo.


E vêm-me à memória uma frase batida: "Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida..."

quinta-feira, 6 de março de 2008

Escala na Costa Atlântica



A paisagem muda. Estamos na província de Chubut, mais árida, mais desértica. A cor das montanhas passou de várias tonalidades de verde para se converter em planícies amareladas e infinitas.

07h da manhã - Chegada a Comodoro Rivadavia, a cidade do petróleo.

Um nascer-do-sol impressionante espera-nos no novo destino. Na verdade mais do que um destino, é uma escala. Com a luz do amanhacer, desvaneceria também a impactante magia daquele momento e esperava-me uma cidade feia, suja, industrial e pouco simpática.

Despeço-me do Pol. Na verdade é um "até já". Tenho a certeza que nos encontraremos noutra parte qualquer do planeta, como viajantes errantes que sorriem às coindências e aos encontros inesperados em lugares imprevisíveis. Há 10 dias que viajamos juntos.
Foi muito bom ter partilhado este início da minha viagem com ele. A convivência com o Pol é fácil, fluída e fraternal. E agora, também de forma fraternal divide comigo o seu Guia Lonely Planet Argentina.

Escapo o mais rapidamente que posso da cidade que cheira a petróleo e vou em direcção a Rada Tilly, visitar uma reserva de lobos marinhos.
Infelizmente a falta de bateria da máquina boicotou as expectativas de "roubar a alma" às centenas de lobos marinhos aqui estacionados.

Cada vez são mais os lobos que vem para este lugar em busca de alimento. O guia explica-me que é precisamente por isso que em mais ou menos 10 anos, a quantidade de lobos marinhos aumentou de 470 para 1700.

Estamos na Punta del Marqués - uma reserva de lobos marinhos.
Explica-me montes de coisas sobre os lobos, sobre o ciclo de reproduçao, hábitos e alimentação.
Explica-me que esta não é uma zona de reprodução, e que nessas zonas entre dezembro e janeiro, se pode ver uma grande concentração de lobos.

Quem chega primeiro à chamada zona de reprodução são os machos. Digamos que têm entre eles uma "pequena conversa" para ver quem fica com os melhores sítios (e por conseguinte com mais fêmeas). Quem diz "conversa", diz luta e das feias, de tal forma que é muito comum estarem todos cheios de feridas,com muitas mazelas e sem dentes.

Então chegam as fêmeas. Se os machos tem tendência em ir para longe do sítio onde nasceram, já as fêmeas tendem a regressar, para parir no sítio onde nasceram.
Durante este processo, os machos estao muitíssimo atentos para não perder as suas fêmeas, o seu harém de vista, porque à mínima distraçao, zás... vem outro macho e rapta a donzela!
O periódo de gestação das crias é de 9 meses. Quatro dias depois de terem parido, as lobas marinhas já estão fertéis outra vez.
Daí o atenção dos machos... Um dos maiores perigos são os lobos jovens que, ainda não conseguiram ganhar o seu espaço, mas andam com as hormonas em alta.
Estou impressionadissima com a espécie!!!
O guia conta-me que uma vez, um grupo de 300 lobos jovens juntaram-se e invadiram um dos ilhéus onde estavam machos, femêas e crias. Foi uma autêntica carnificina...mataram lobos, dizimaram as crias, raptaram fêmeas...( a que será que isto me lembra?.... a chegada dos Europeus às Américas?...)

Depois fala-me dos pinguins, dos elefantes marinhos.
Eu que sou uma leiga nestas coisas de ciências naturais e bio-diversidade faço muitas perguntas.

Eram apenas 5 kilométros da reserva até Rada Tilly e pensei que ir a pé constituiria um lindo passeio.
Não fossem seres simpáticos e misericordiosos como a Miriam e o Carlos a salvarem a
patanisca do pó e vento patagónico, ainda hoje estaria por ali.

À minha frente, um oceano familiar convida-se e apela a um mergulho.
O Atlântico! Aceno-vos deste outro lado.

Quando saí do mar não sabia se estava num deserto, se dentro de uma máquina secadora-centrifugadora.
Horas depois, sentada no bus, com o corpo e o cabelo cheio de pó, sal e areia, compreendi que a banhoca não tinha sido tão boa ideia como isso!!

Terra do Fogo, cá vamos nós!!!



Hasta siempre... Viajeros!





Na Casa del Viajero fala-se em várias línguas, de tudo e de nada , de filosofia gastronómica, de Epicuro e de Hedonismo.

A Natália é argentina porteña, o Pepe é napolitano, o Salvador é de Valência e o Alex é uma mistura de búlgaro com russo e é o que se pode chamar o verdadeiro patagónico (calça 48!!).
O Lévy é americano e vive aqui há dois meses, o Mico é filandês, a Muni alemã e a Anne também, a Heidi inglesa, o Pol catalão, a patanisca lusa e chegou hoje um casal suiço.
O Pepe diz que se vai embora amanhã. Todos tentámos convencê-lo a não ir.
Parece que vivemos aqui na cabana de madeira do Augustí desde sempre.
Por isso, o Pol brinca dizendo: "Tio, como es que te puedes ir? Si hace 10 años vivimos juntos?"

A sensação é similar na verdade. Parece que vivemos na cabanita do Augustí hace siglos.




Entre a preparação do jantar, o Pol saca do acordeão e no meio da cozinha rapidamente se cria um círculo danças europeias. Em amena cavaqueira decorre a noite e a madrugada.



Decidamente um sítio abençoado.



Ontem foi o dia da crise do viajante. Toda a gente perguntava a toda gente qual era a rota que iria seguir, transportes, combinações. As decisões eram urgentes porque havia o stress de já não haver bilhetes para o sítio desejado. A partir daqui quase toda a gente vai para sul, ou seja: via Rota 40 ou pelo litoral. A primeira decisão consiste em decidir a via e a segunda em arranjar as melhores conecções. De qualquer forma o viajante terá sempre pela frente uma grande estupada.

Sentada na esplanada da Heladaria Artesanal de El Bolsón, disfruto dos últimos minutos antes de continuar a minha odisseia para o sul do Sul.
Aqui neste sítio onde me apeteceu demorar uns dias, criar raízes e "chamar casa a esse lugar"...
Sair de El Bolsón custa. Custa porque ganhei uma família, porque a comunhão e a partilha é sempre algo especial, raro e único!

O Salvador e o Alex vêm despedir-se de nós. O Nahuel e o Augustí dizem-nos adeus.
Quando o táxi está quase a arrancar o Salvador grita:
- Chicos, no olvidarvos que podéis siempre volver a vuestra casa, a vuestra familia!
Obrigada Família Bolsonera!

A Natália vem ter conosco à estação. Diz que está nostálgica e que vai ter saudades nossas.
Dá-me um saco de sugus.
- Caramelitos para tu viaje!

Mais do que os sugus, é a doçura da Natália que me comove. Hasta pronto!
Abraço.


El Bolsón fica para trás . Para trás do autocarro.
Uma longa e exasperante viagem espera-me.