sexta-feira, 14 de março de 2008

4 dias, 4 noites



4 dias, 4 noites é o tempo que demora o barco da Navimag de Puerto Natales a Puerto Montt.
Avisa-se a tripulação da Bifana no Paraíso que mudámos de país. Estamos no Chile, quele país muito estreito e muito comprido.

E foi também aqui que me encontrei com a Andrea. Na verdade deveria dizer que foi aqui que me desencontrei (muitas vezes!) com a Andrea, e apesar das telecomunicaçoes argentinas terem atrasado o encontro, ele deu-se.
E juntas embarcámos, no sentido mais lato da palavra.
Os companheiros de viagem não se procuram, encontram-se. E sobre isto nada mais há a dizer.





A bordo do Evangelistas só se ouve o motor.

No primeiro dia a bordo, a novidade e a excitação rapidamente se gastou e se converteu em rotina e melancolia. Chove. Aninho-me na minha cama na parte de cima do beliche, que tem umas cortinas bordeaux muito monas. Lá fora tudo é água.

A viagem de barco é uma espécie de viagem dentro da viagem.
O tempo é ditado pelo mar, num andamento allegro ma non troppo, compassado e sem pausas. É o ritmo das águas que organiza o tempo e que compoem a viagem.
A nós resta-nos apenas o papel de espectadores passivos da passagem desse Tempo. Aqui são as pessoas que tem de se adaptar a essa tranquilidade impassível, quase monótona e de uma felicidade quase imperceptível. A velocidade, a pressa, o stress são palavras que rapidamente se desaprendem.
Acelerada como sou aprendo a aceitar esse tempo. Procuro disfrutar do trajecto, da travessia, da viagem.
Viaja-se sem regresso, de um ponto geográfico para outro, viaja-se de dentro para fora e vice-versa, de forma recíproca e proporcional ao que se vê para fora e desde dentro.Mais do que os destinos, aqui o que importa é a rota, a travessia.
E assim os destinos fazem-se desejar, porque estão longe, porque são inacessiveis, porque demoram, tardam, fazem-nos esperar ( e concluo que a minha viagem até Usuhaia, apesar de massacrante teve o tempo justo... quem é que quer chegar numa hora ao fim-do-mundo?). É o estimulante das viagens, que nos faz confrontar com diferentes níveis de desconforto, estranheza e adaptação. E não é apenas porque é matéria desconhecida senão porque muitas vezes somos estrangeiros de nós proprios.
E assim se improvisam rotas, se reinventam destinos, se experimentam meios de comunicação e se desmultiplicam os mil e um alter-egos que vivem dentro de nós.






Os ritmos e os horários seguem o sol e é ele que regula a vida dos tripulantes a bordo e que define o ciclo dos acontecimentos e do quotidiano.

O nascer do sol e o pôr-do-sol contituem os momentos mais altos e mais emocionantes do dia. Ver o sol a sair do canal Poluche - ora aqui está uma imagem inesquecível.


O filme de hoje não podia ser mais adequado:"Diários de Motocicleta". Ver de novo este filme e vê-lo aqui ganha uma outra dimensão, mais próxima. Desta vez estou deste lado, reconheço lugares, sentimentos e inquietaçoes que à mistura com a possibilidade da realizaçao de sonhos antigos e de epopeias que julgávamos impossíveis, desdobram sorrisos.

O barco segue tranquilo, a uma velocidade estável e constante.

A vida a bordo é feita de pequenos nadas, acontecimentos insignificantes, detalhes mínimos que distraem a monotonia náutica. Passamos por alguns glaciares, por vários canais, vegetação surpreendente, ilhas. Desembarcamos em Puerto Éden, que é uma espécie de ilha perdida no tempo.


São 12h30 e ouve-se alto e em bom tom a voz da Aline, que diz que o comer já está na mesa. Horários de abuelitos- sentencia a Andrea.




Depois de um dia inteiro de chuvas, saiu o sol e com ele toda a tripulação para o convés.
O sol bate no mar, brilha e reflete nos olhos e no corpo de quem o recebe como se fosse uma benção, um milagre.

A bordo do Evangelistas não há muito que fazer. O tempo passa devagar, despreocupado.
A vida é fácil e simples. Dizem-nos quando temos que comer, quando temos que dormir, quando temos que acordar, que o filme ver ... - como se fossemos crianças, diz a Andrea.







Passamos por um barco abandonado. É o barco do capitão Leónidas. Em 1963 este capitão que fazia transporte de açucar preparava-se para dar o golpe à companhia de seguros. Vendeu o açucar e chocou contra uma rocha para provocar o naufrágio. Sabia que o açucar se dissolver-se-ia na água, mas quando a companhia de seguros lhe perguntou pelos pacotes onde açucar vinha embalado, o capitão vacilou - não tinha previsto esse "pequeno pormenor". Resultado: a companhia de seguros não pagou um tostão ao Leónidas e o barco permanaceu encalhado na rocha onde tinha chocado. Hoje faz parte das cartas de navegação e exerce a função de farol.

Feliz e de-leitada (isto porque estou deitada e leio ao mesmo tempo!) recebo o sol do lado esquerdo e vento do lado direito.
Não fosse a voz monocórdica da Aline a repetir várias vezes por dia:"pasajeros, vuestra atención por favor" e o barco possuir uma maioria anglo-saxónico-americana, e tudo seria praticamente perfeito.

Leio Chatwin. Num capítulo sobre Puerto Deseado e a propósito de pinguins, detenho-me numa frase: "Será que também nós possuímos viagens programadas no nosso sistema central? Talvez seja a única forma de explicar a nossa agitação doentia".









Todos os temporários habitantes do Evangelistas estão cá fora: bebem cerveja, jogam xadrez, apanham sol, leêm, ouvem música, observam com binóculos os arredores.


Curiosamente a parte mais intranquila da viagem dá-se quando entramos no Pacífico, que diga-se de passagem de pacífico não tem nada - só o nome - e quem lho deu, duvido muito que o tenha conhecido neste estado.
O comprimido drama-mini faz com não esteja muito enjoada mas en cambio dá-me uma solência tão profunda e tão exagerada, que adormeço no bar, no meio de corpos e de garrafas de wishky a partirem-se... enfim um mundo mundo inteiro a desmoronar-se sobre a minha cabeça e eu mal conseguia abrir um olho.

O jantar é servido num clima de grande instabilidade e precariedade horizontal.
É impossível não rir. De repente os 160 tripulantes do Evangelistas parecem que ficaram de um momento para outro completamente bebêdos e fazem grandes e descontrolados "zss" para se deslocarem.





São 21h30, é cedo mas os comprimidos impoem a ida para cama.
Esta noite dorme-se sobre a rota ocêanica e enquanto o Pacífico embala frenéticamente o meu corpo, que dança na cama, eu adormeço com a barriga em círculos intermináveis e com um largo sorriso que ultrapassa a cara.

E a voz do Chico, sussura-me das águas: "navegar é preciso, viver não é preciso..."



4 comentários:

Anónimo disse...

Claudia,
Foi Fernao de Magalhaes que deu, o nome de "Pacifico" ,(que tem a ver com PAZ?)ao oceano e......curiosamente foi assassinado pouco tempo depois, nao regressando, (como nos disseram "na escola")!
ainda nao tive resposta/mail sobre Uruguay!
beijinhos, Alice

Anónimo disse...

Escrevi à pressa e num dia triste p/ nos, bem sabes porquê.....
Quis dizer que F. Magalhaes deu o nome de pacifico, apos ter passado p/ situaçoes dificeis e enfim (!) ter encontrado a paz.....
Enviei mail e espero é uma resposta tua qto. ao Uruguay!
infelizm/ se quiseres continuar a conhecer o mundo, teras os tais probls. burocraticos e de....passaporte em MUITOS paises!
Belas fotos, c/o dizes, so sentidas qdo. vividas de perto!
bjhos., Alice

lili disse...

obrigada Alice, pelo esclarecimento!!
eu bem achava que era o nosso Fernao, mas nao me lembrava porquê...

bjinhos

nea disse...

vaya vaya... la poetissa corre per dins!
saps? marxant de Santiago finalment he dinat amb el Rodrigo!! La propera odissea és trobar el Gabriel, que està de moment desaparescut!
he començat a escriure el capítol de Valpo (en castellà) i les paraules em surten més poètiques.
bona nit, bonica. lindo viage por el noroeste (NOA)! Andrea