4 dias, 4 noites é o tempo que demora o barco da
Navimag de Puerto Natales a Puerto Montt.
Avisa-se a tripulação da Bifana no Paraíso que mudámos de país. Estamos no Chile, quele país muito estreito e muito comprido.
E foi também aqui que me encontrei com a Andrea. Na verdade deveria dizer que foi aqui que me desencontrei (muitas vezes!) com a Andrea, e apesar das telecomunicaçoes argentinas terem atrasado o encontro, ele deu-se.
E juntas embarcámos, no sentido mais lato da palavra.
Os companheiros de viagem não se procuram, encontram-se. E sobre isto nada mais há a dizer.
A bordo do
Evangelistas só se ouve o motor.
No primeiro dia a bordo, a novidade e a excitação rapidamente se gastou e se converteu em rotina e melancolia. Chove. Aninho-me na minha cama na parte de cima do beliche, que tem umas cortinas
bordeaux muito
monas. Lá fora tudo é água.
A viagem de barco é uma espécie de viagem dentro da viagem.
O tempo é ditado pelo mar, num andamento
allegro ma non troppo, compassado e sem pausas. É o ritmo das águas que organiza o tempo e que compoem a viagem.
A nós resta-nos apenas o papel de espectadores passivos da passagem desse Tempo. Aqui são as pessoas que tem de se adaptar a essa tranquilidade impassível, quase monótona e de uma felicidade quase imperceptível. A velocidade, a pressa, o stress são palavras que rapidamente se desaprendem.
Acelerada como sou aprendo a aceitar esse tempo. Procuro disfrutar do trajecto, da travessia, da viagem.
Viaja-se sem regresso, de um ponto geográfico para outro, viaja-se de dentro para fora e vice-versa, de forma recíproca e proporcional ao que se vê para fora e desde dentro.Mais do que os destinos, aqui o que importa é a rota, a travessia.
E assim os destinos fazem-se desejar, porque estão longe, porque são inacessiveis, porque demoram, tardam, fazem-nos esperar ( e concluo que a minha viagem até Usuhaia, apesar de massacrante teve o tempo justo... quem é que quer chegar numa hora ao fim-do-mundo?). É o estimulante das viagens, que nos faz confrontar com diferentes níveis de desconforto, estranheza e adaptação. E não é apenas porque é matéria desconhecida senão porque muitas vezes somos estrangeiros de nós proprios.
E assim se improvisam rotas, se reinventam destinos, se experimentam meios de comunicação e se desmultiplicam os mil e um alter-egos que vivem dentro de nós.
Os ritmos e os horários seguem o sol e é ele que regula a vida dos tripulantes a bordo e que define o ciclo dos acontecimentos e do quotidiano.
O nascer do sol e o pôr-do-sol contituem os momentos mais altos e mais emocionantes do dia. Ver o sol a sair do canal
Poluche - ora aqui está uma imagem inesquecível.
O filme de hoje não podia ser mais adequado:"Diários de Motocicleta". Ver de novo este filme e vê-lo aqui ganha uma outra dimensão, mais próxima. Desta vez estou deste lado, reconheço lugares, sentimentos e inquietaçoes que à mistura com a possibilidade da realizaçao de sonhos antigos e de epopeias que julgávamos impossíveis, desdobram sorrisos.
O barco segue tranquilo, a uma velocidade estável e constante.
A vida a bordo é feita de pequenos nadas, acontecimentos insignificantes, detalhes mínimos que distraem a monotonia náutica. Passamos por alguns glaciares, por vários canais, vegetação surpreendente, ilhas. Desembarcamos em Puerto Éden, que é uma espécie de ilha perdida no tempo.
São 12h30 e ouve-se alto e em bom tom a voz da Aline, que diz que o comer já está na mesa. Horários de abuelitos- sentencia a Andrea.
Depois de um dia inteiro de chuvas, saiu o sol e com ele toda a tripulação para o convés.
O sol bate no mar, brilha e reflete nos olhos e no corpo de quem o recebe como se fosse uma benção, um milagre.
A bordo do
Evangelistas não há muito que fazer. O tempo passa devagar, despreocupado.
A vida é fácil e simples. Dizem-nos quando temos que comer, quando temos que dormir, quando temos que acordar, que o filme ver ... - como se fossemos crianças, diz a Andrea.
Passamos por um barco abandonado. É o barco do capitão
Leónidas. Em 1963 este capitão que fazia transporte de açucar preparava-se para dar o golpe à companhia de seguros. Vendeu o açucar e chocou contra uma rocha para provocar o naufrágio. Sabia que o açucar se dissolver-se-ia na água, mas quando a companhia de seguros lhe perguntou pelos pacotes onde açucar vinha embalado, o capitão vacilou - não tinha previsto esse "pequeno pormenor". Resultado: a companhia de seguros não pagou um tostão ao Leónidas e o barco permanaceu encalhado na rocha onde tinha chocado. Hoje faz parte das cartas de navegação e exerce a função de farol.
Feliz e de-leitada (isto porque estou deitada e leio ao mesmo tempo!) recebo o sol do lado esquerdo e vento do lado direito.
Não fosse a voz monocórdica da Aline a repetir várias vezes por dia:"pasajeros, vuestra atención por favor" e o barco possuir uma maioria anglo-saxónico-americana, e tudo seria praticamente perfeito.
Leio Chatwin. Num capítulo sobre Puerto Deseado e a propósito de pinguins, detenho-me numa frase: "Será que também nós possuímos viagens programadas no nosso sistema central? Talvez seja a única forma de explicar a nossa agitação doentia".
Todos os temporários habitantes do
Evangelistas estão cá fora: bebem cerveja, jogam xadrez, apanham sol, leêm, ouvem música, observam com binóculos os arredores.
Curiosamente a parte mais intranquila da viagem dá-se quando entramos no Pacífico, que diga-se de passagem de pacífico não tem nada - só o nome - e quem lho deu, duvido muito que o tenha conhecido neste estado.
O comprimido
drama-mini faz com não esteja muito enjoada mas
en cambio dá-me uma solência tão profunda e tão exagerada, que adormeço no bar, no meio de corpos e de garrafas de
wishky a partirem-se... enfim um mundo mundo inteiro a desmoronar-se sobre a minha cabeça e eu mal conseguia abrir um olho.
O jantar é servido num clima de grande instabilidade e precariedade horizontal.
É impossível não rir. De repente os 160 tripulantes do Evangelistas parecem que ficaram de um momento para outro completamente bebêdos e fazem grandes e descontrolados "zss" para se deslocarem.
São 21h30, é cedo mas os comprimidos impoem a ida para cama.
Esta noite dorme-se sobre a rota ocêanica e enquanto o Pacífico embala frenéticamente o meu corpo, que dança na cama, eu adormeço com a barriga em círculos intermináveis e com um largo sorriso que ultrapassa a cara.
E a voz do Chico, sussura-me das águas: "navegar é preciso, viver não é preciso..."