quarta-feira, 9 de abril de 2008

Noroeste Andino III




Província de Jujuy.
São muito poucos os kilómetros que separam a Argentina da Bolívia.
Iruya será provavelmente o último destino antes do regresso a Buenos Aires.
Os caminhos percorridos já contam com uma quilometragem razoável e as viagens dentro da viagem continuam a ser uma epopeia singular.

Os olhos estão em "modo observação" e procuram tudo absorver e registar. 
Aqui, no Noroeste Andino toda gente masca folhas de coca. Têm as gengivas muito inchadas e constato que um dentista aqui teria muito trabalhinho...

Também os cemitérios, apesar de obviamente não serem locais propriamente turísticos, chamam-me a atenção pelas cores...





Em Humauhaca apanho o micro para Iruya

Primeiro é preciso dizer que o caminho para Iruya é um não caminho.
São 3 horas para percorrer 60 kms e existem 2 autocarros por dia. 
O colectivo, qual todo-o-terreno, passa por estradas impossíveis, faz razias impressionantes às montanhas, passa por cima de rios, buracos, obstáculos, pelo meio das nuvens e desafia a gravidade.

O pôr-do-sol desenha com traço fino e perfeito as silhuetas das montanhas, das colinas e dos animais que prodigiosamente vivem nos seus cumes.
Flores amarelas, vermelhas, roxas e brancas rompem com a austeridade das montanhas. 
Até o Julio Iglésias argentino de terceira categoria, banda sonora do autocarro, me parece aceitável.



São sete da noite e começa a escurecer. O que antes era uma paisagem verde e florida rapidamente se começa a transformar em escuro, breu e nada.
Ao deslumbramento junta-se agora alguma inquietação, um nervoso miudinho.
Uma espécie de nó na garganta que se alastra até ao peito. 
Progressivamente aparece o receio, o temor, o medo e o pânico. Depois o medo estagnou e ficou só medo.
Sabia que ainda teria pela frente, pelo menos mais duas horas ( isto se conseguissémos chegar....  o que a desaustinada condução deste jujeño louco me fazia duvidar...).

O caminho para Iruya é um arrepiante caminho através do nada para chegar a parte nenhuma.

Subimos. Não sei a que altitude estamos mas sei que estamos cá em cima. Principalmente os meus ouvidos dizem-me que estamos muito alto.
A toda a velocidade, este velho autocarro passa empedrados, estradas estreitas, curvas muito apertadas, riachos, caminhos da Idade da Pedra, improváveis ladeiras...
Fecho os olhos.
A barriga também dá o seu alerta. Acho que pela primeira nesta viagem sinto medo.
Até considero que aqui a patanisca é meia destemida.... mas desta vez e falando em bom castelhano, está "cagada de miedo!".

E só me vinha à cabeça uma frase que o meu pai costuma repetir algumas vezes: " Deus proteje os audazes", mas na minha cabeça não soava como um provérbio, era um desejo, uma prece, uma súplica...

Noite cerrada. De vez em quando faço algumas investidas ao telemóvel para checkear horas.
Não se vê qualquer luz, nem nenhum sinal de proximidade com nada e muito menos qualquer vestígio de Iruya.
E enquanto a respiração se corta e o coração se acelera, a música que me fazem ouvir não podia ser menos consensual com o meu estado interior - o pimba do cantor romântico argentino,  que antes até passava despercebido, arranha os meus ouvidos com a seguinte letra " Ai mi amor, quedáte comigo como una cachorrita"....

Depois de duas horas de viagem, todos as partes e orgãos do meu corpo reclamam e gesticulam nervosas e exaustas: o esófago, a bacia, o estômago, os ouvidos, a bexiga...
E tenho sede, fome, frio e só me apetece gritar: " já não quero brincar mais.... quero a minha mãe e o meu pai!!". 
Mas estou sozinha, a 2500 kilometros de Buenos Aires e a 10 mil do meu país...

Depois do queixume infantil, vem o monólogo interior, o sub-texto auto-flagelador. Falo para mim, falo contra mim, com pensamentos num castelhano bem argentino:
- Porqué sós tan boluda, Cláudia??Que siempre te pasan estas cosas, y te pasan por colgada que eres!!Que no aprendes nunca chiquilla??
E desanco a meu lado aventureiro e às vezes tão irresponsável.

E já não sabia se o pior era o estar nas mãos deste desvairado condutor, qual Ayrton Senna dos pobres ou o suplício de ter de aguentar a música mais pirosa do mundo.
Isto para não falar da problemática seguinte que seria arranjar alojamento às 22h da noite numa terra de fim-de -mundo. Isto, claro... se chegassémos.... 

Quando o motorista resolve pôr ainda mais alto a música, conto até dez na esperança que isso acalme a minha fúria e o túmulto interior pronto a explodir.
"Maria era pobrecita.. sus padres le batian...".

Pois é...

"Tudo isto é triste, tudo isto existe.... tudo isto é Fado.....!"
Trulum Tum Tum.

Fim de linha.

2 comentários:

Manel disse...

:) ah pois, os argentinos, e não os brasileiros, são os portugueses da América do Sul.

o medo... o medo a essa distância de casa, é qualquer coisa. fizeste-me voltar ao gelar do sangue quando um polícia chinês me olhou no olhos durante o que me pareceu uma eternidade e acabou por decidir não me pedir o visto... que denunciaria a minha ilegalidade naquela fronteira entre Cantão e a terra de ninguém que me levaria de volta a Macau. essa sensação de que estás terminantemente próxima de uma linha irreversível, é indescritível...

beijos, patanisca.

lili disse...

é também esse o prazer das viagens.. pisar essas terras de ninguém onde a protecção e a segurança são palavras sem significados,sinónimos,sentido

beijos, Joanita!

Que bom é sentir que o perimetro das viagens ultrapassa fronteiras e distâcias!