Semana de férias. Todos sentimos que precisamos de pausa. Trocamos destinos, impressões e comparamos itinerários. Uns vão para Mendoza, outros para Iguazú, outros para a Patagónia, outros para o Norte, para Córdoba.... e os Xurries, que não tinham ainda planeado muito bem a coisa, lá se fueron pelos caminos de latino-américa...
O plano ambicioso e irreal, mas os viajeritos eram optimistas e os trocadilhos com as palavras Atacama e Uyuni fizeram com que nada parecesse impossível para esta dupla lusitana de Quixote e Dulcineia!!!
Apenas 19 horas de viagem e qualquer coisa como 1700 kms separam Buenos Aires de Salta. Este seria apenas apenas o início, a inauguração de uma longa escala de percursos e kilometragem a realizar. Muitas muitas horas de estrada...
Jantamos na Peña de Balderrama. Local nocturno salteño muito conhecido pelos grupos de música popular que o frequentam. Comemos locro, humitas e tamales muito bem acompanhados de um vinho Torrontés delicioso. O apresentador da Peña é uma figura inesquecível e caricata.
A fronteira da Argentina para o Chile é feita através do Paso do Jamal, que é uma espécie de terra de ninguém. Aproximadamente 100 kms separam a saída da fronteira argentina à entrada em território chileno.
Nada. Absolutamente nada.Não existe nenhum elemento que possa provar a existência do Homem. Montanhas altas e deslumbrantes e áridas. Tudo à volta é excessivamente árido.
É o deserto. Mais precisamente o Deserto de Atacama.
A chegada a San Pedro de Atacama reflete os efeitos secundários da altitude, qualquer coisita como 4800 metros. Para além do estômago se ter deslocado para o esófago, a cabeça insiste em explodir do corpo no meio das montanhas. Aterramos num outro país, com outro sotaque, outra moeda, outros costumes, outro humor, outro mundo...
Aqui tudo é extremo, as paisagens, as montanhas mas principalmente a temperatura.
A diferença térmica existente por estas zonas chega a ter uma variação térmica de mais de 20 graus, que separam o dia o da noite.
Apesar disso, os olhos viam coisas jamais vistas, viam pôres-do-sol nunca jamais contemplados..
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A noite não podia ser mais perfeita (poder-se-ia até dizer radical..) e até houve tempo para fazer sand board no Valle de la Muerte ( espécie de surf nas enormes dunas atacameñas). E com uma lua abençoadamente cheia fomos conhecer o famoso Valle de la Luna...
Menos perfeita e mais irregular seria o caminho de volta para a Argentina... pela Bolívia, portanto, através de Uyuni, onde estão as maiores salinas do Mundo.
D. Felix, condigno representante da Colque Tours e da mafia boliviana, vendeu-nos a excursão de três dias às Salinas passando por vários locais, que segundo ele, são paradisiácos e inesquecíveis. E de facto seriam inesquecíveis.... mas nem sempre pelos melhores motivos...
O que aconteceu durante os três dias da excursão foi de uma densidade física e emocional muito forte, por isso de difícil resumo e descrição.
Três brasucas, dois portugas, uma alemã. Um 4x4 que não funciona por ignição mas por ligação directa, conduzido por um sujeito bem antipático e estranho de seu nome: Miguel.
Passado menos de uma hora rebenta a primeira de muitas discussões que se iriam suceder. Motivo: o grupo estava demasiado animado e cantava alegremente, assim que de forma completamente desproporcional e com uma total ausência de bons modos, o Miguel ordena agressivamente que nos calemos. Os ânimos exaltam-se e exigimos mudar de condutor.
Mas estamos no deserto, sem qualquer forma de contactar com ninguém e destinados a passar 3 dias nas mãos desta criatura a quem o André, um dos brasucas, qualificava de esquizofrénico (e atenção, não é exagero!!!)
E seria este início atribulado que daria o "tom" a toda a viagem.
A profunda antipatia do nosso guia-condutor, as muitas horas de viagem, o pouco espaço dividido por sete pessoas no 4x4 pelo deserto, a falta de banho, os graus negativos e dolorosamente frios, as sucessivas discussões e as escandalosas diferenças entre o folheto promocional impingido por D. Félix e realidade que nos era imposta, foram apenas alguns dos factores que conduziram a um cansaço e desgaste extremo.
Valeram-nos as paisagens, que de facto eram fabulosas, e os companheiros de viagem: a paciência da Monika e o humor contagiante e terno do Miller, do Filipe e do André.
Bolívia.
Sem qualquer dúvida estamos noutro mundo. Os traços fisionómicos mudam completamente. Rostos morenos, índios, rudes, forte. Mulheres com longas tranças, com chapéus de coco e saias coloridas.
Duros, densos e desconfiados, assim são os bolivianos do deserto. Acho que o clima e o meio ambiente determinam o seu carácter; não poderiam ser de outra maneira, caso contrário sucumbiriam às adversidades de um deserto árido e inóspito.
Homens mascando folhas de coca ( principalmente lembro o velho da Atocha que tinha mais folhas que dentes dentro da boca..)
As crianças tem um olhar intenso e maduro. É o mesmo olhar que encontrei nos olhos das crianças em Moçambique, a quem a infância tinha sido roubada pela fome, pela pobreza e pela miséria.
Passagem pela Bolívia é acompanhada de uma sensação muito forte.
È a luta pela sobrevivência. É o deserto.
Muito pó, muito frio, muito calor, 2o graus durante o dia , -5 graus de noite.
As temperaturas extremas também provocam humores extremos, que acolhem momentos de fragilidade, de desconfortos múltiplos, desprotecção e fadiga.
O que também é completamente extremo e abusivo é a beleza desconcertante das paisagens deste país....
Odisseia igual a entrar na Bolívia, é sair da Bolívia.
Os horários dos transportes e a duração das viagens aqui são meras possibilidades especulativas.
É que existe um mundo reconhecível, meio-ocidental onde a comunicação, as telecomunicações e os transportes são um facto e outro em que tudo isso é pura ilusão e ficção.
Perguntas como a que horas chega tal transporte, nunca me pareceram tão subjectivas e tão inúteis... Não me lembro a quantas pessoas perguntei "a que horas sale el rapidito para Tupiza?", mas tenho a certeza de que não houve uma única resposta igual.
Os gritos e os pregões para os vários destinos na estação de autocarros de Uyuni, fazem com que a massa sonora seja impressionante e inaudível. Tentamos negociar quem nos leve a Tupiza. Dizem-nos que o mínimo são 10 pessoas. Juntamos as nossas vozes à massa sonora: "Tupiza!Tupiza!"
E assim fizemos os nossos primeiros amigos bolivianos: a Marcela e o Jorge, que também queriam ir para Tupiza. Mas eramos apenas 4...
Já completamente bebêdos de cansaço e num ataque imperialista e gringero, dizemos que pagaremos o equivalente a 8 pessoas!!!
Por esta altura, os reis del Mambo de Uyuni já esperavam qualquer coisa e coisa nehuma. Por isso não nos surpreendeu muito que depois de 1h à espera, o choffer não tivesse chegado.
Bem, para tentar resumir, até porque o post já vai longo, o dia seguinte foi passado de rapidito e em 4x4, e por sua vez em omnibus e mais outro omnibus, para finalmente chegarmos à fronteira argentina; mais ou menos 24 horas de viagem para percorrer 800 kilométros!
O estado em que os dois viajeritos chegaram a Salta inspirava ao mesmo tempo piedade e riso.
Incapazes de apanhar outro micro de 24 horas para Buenos Aires, fomos directamente para o aeroporto de Salta, onde algo completamente inédito encerrava a nossa loca caminada; o aeroporto estava vazio!!! Vazio e às escuras. Apareceu segurança que nos informou que os funcionários só chegariam dentro de umas horas.
E assim fizemos do aeroporto a nossa casa; tomamos banho, trocamos de roupa, organizamos mochilas, comemos, descansamos!
Lavadinhos e perfumados, monsieur Mota e madame Andrade iam recebendo as pessoas que começavam a chegar às instalações aeroportuárias transformadas em provisório lar!!
O regresso a Buenos Aires fez-se em uma hora e trinta minutos e nunca o tempo e o mundo moderno nos pareceu tão irreal e espantoso!