segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Benvinguda! – diz-me a minha cidade





É com sol e com o comboio a não parar nas mesmas estações que antes, que aterro em Barcelona. Proxima Estació : Passeig de Grácia.
Com uma estranha sensação de felicidade e luz, os meus sentidos exaltam-se e encontram-se com a cidade. Percorrem caminhos, fazem o reconhecimento da planta da cidade, procuram as diferenças, o que permanece intacto, igual e mutável. Procuram cheiros familiares, sabores que exigem ser satisfeitos, fazer listas rápidas mentais de “coisas que tenho fazer” :
tapear nos Tres Tombs, tomar cafés com amigos, ir ao Palau de la Música, percorrer as ruas do Raval, ir as lojas da Portaferrissa, ir ao Ingeni comprar máscaras, comprar fruta no mercat de Sant Antoni, ver os velhotes a dançar Sardanas na Plaça S. Jaume, tomar un café tallat no Original, apanhar sol nas praças da Grácia, ouvir os freaks a tocar djambé no Parc de la Ciudadella (bem.. na verdade, disso não tenho assim tantas saudades...).

Vasculho no cérebro os neurónios dos idiomas e escolho: catalão!
- Es una sensació molt bona tornar a casa! Merci...
Combinei com a Susy no único café da cidade que tem cerca de 50 mesas na esplanada – o Café Zurich, que fica num sitio nao menos confuso e populoso: a Plaça Catalunya.
Ela vê-me e chama-me.
Está com uma barriga enorme e lá dentro está o Nilo. Abraçamo-nos.



O essencial está no sítio, concluo.
O design, a pobreza e decadência continuam a conviver pacificamente nas ruas do Raval (apesar de alguns edificios velhos terem dado lugar a prédios muito fashions), há estátuas cada vez mais feias e deprimentes nas Ramblas, a cidade continua cheia de gente, de turistas, de caras coloridas, diversas e procedentes de todos os lados do globo!

Fazer coisas muito simples.Soletrar nomes de ruas, comer patatas bravas, beber claras, sentir o cheiro a
 porros fumados tranquilamente nas esplanadas dos cafés. Sentir o sol quando ele sai inesperadamente das ruas estreitas do Bairro Gótico. 







Coisas simples. Conversar com o Joaquin enquanto bebo uma infusión “amanecer” deliciosamente regeneradora acompanhado de uma pita especial do Saltico.
Saltar para cima da Paulete e da Karuka, improvisar abraços festivos e sonoros, olhar nos olhos umas das outras, contarmo-nos as nossas vidas, sentir a energia dos reencontros e a força da amizade, o único património que faço questão de possuir e preservar.
Sentir uma pacífica e deslumbrada sensação de famililiaridade como se nunca tivesse deixado de viver de aqui.





Gastar tempo em coisas simples, inúteis e improdutivas (pelo menos á luz do conceito mercantilista e contemporâneo de produtividade..). Conversar e jogar a noite inteira, rir, acordar na casa da Mar com um terraço lindo onde se vê a catedral, ir a Monjuic, ver a esposiçoes na Caixa Forúm, comer pitas shoarmas na Rambla do Raval.

Tudo coisas simples.
Passar pela Calle Compte Borrell 115 bis e demorar-me uns segundos a olhar para o segundo andar e pensar quem vive agora ali, remexer nas memórias, dizer “fem un pensament”, “patejar” no Raval, sentir o cheiro a foccacias quando passo pelo Buenas Migas, sorrir com o ar “chulissimo” da empregada do café elisabeth, dar abraços a amigos...











                                Tudo coisas muito simples.




sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

No Elevador do filho de Deus


A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
Que eu já tô ficando craque em ressurreição.
Bobeou eu tô morrendo
Na minha extrema menção
Na minha extrema-unçãode acordar viva todo dia
Há dores que sinceramente eu não resolvo
sinceramente sucumbo
Há nós que não dissolvo
e me torno moribundo de doer daquele corte
do haver sangramento e forte
que vem no mesmo malote das coisas queridas
Vem dentro dos amores
dentro das perdas de coisas antes possuídas
dentro das alegrias havidas

Há porradas que não tem saída
há um monte de "não era isso que eu queria"
Outro dia, acabei de morrer
depois de uma crise sobre o existencialismo
3º mundo, ideologia e inflação...
E quando penso que não
me vejo ressurgida no banheiro
feito punheteiro de chuveiro
Sem cor, sem fala
nem informática nem cabala
eu era uma espécie de Lázara
poeta ressuscitada
passaporte sem mala
com destino de nada! 

A gente tem que morrer tantas vezes durante a vida
ensaiar mil vezes a séria despedida
a morte real do gastamento do corpo
a coisa mal resolvida
daquela morte florida
cheia de pêsames nos ombros dos parentes chorosos
cheio do sorriso culpado dos inimigos invejosos
que já to ficando especialista em renascimento



Hoje, praticamente, eu morro quando quero:
às vezes só porque não foi um bom desfecho
ou porque eu não concordo
Ou uma bela puxada no tapete
ou porque eu mesma me enrolo
Não dá outra: tiro o chinelo...
E dou uma morrida!
Não atendo telefone, campainha...
Fico aí camisolenta em estado de éter
nem zangada, nem histérica, nem puta da vida!
Tô nocauteada, tô morrida!



Morte cotidiana é boa porque além de ser uma pausa
não tem aquela ansiedade para entrar em cena
É uma espécie de venda
uma espécie de encomenda que a gente faz
pra ter depois ter um produto com maior resistência
onde a gente se recolhe (e quem não assume nega)
e fica feito a justiça: cega
Depois acorda bela
corta os cabelos
muda a maquiagem
reinventa modelos
reencontra os amigos que fazem a velha e merecida
pergunta ao teu eu: "Onde cê tava? Tava sumida, morreu?"
E a gente com aquela cara de fantasma moderno,
de expersona falida:
- Não, tava só deprimida.


Elisa Lucinda


(poema que integra o espectáculo "Ela uma vez" - Poesia em cena.  Dia 31 de Janeiro às 15h e às 21h30 no Teatro Lethes, em Faro. Mais informações em www.ela-uma-vez.blogspot.com)

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

NeuroLinguística


Quando ele me disse
Ó Linda
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do àpice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez.


   Adélia Prado

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

A saga continua… Godot no centro de saúde?

São 11h30 da manhã. Há cerca de duas atrás arrastei-me da cama para me deslocar ao meu sitío fetiche que tanto entusiamo, excitação e tempo me proporciona: o centro de saúde.    

Com o meu carregamento substancial de cadernos, livros e papeladas para organizar, monto na sala  de espera o  meu improvisado escritório.   

A consulta, essa era para às 10h, mas eu como qualquer outra pessoa que sabe o que custa conseguir  a consultazinha, sabe que o que tem a fazer é esperar… e esperar….e….

Dois médico vêm cá fora e perguntam se está alguém para a consulta dos diabetes.                           Bem, na  verdade não tinha pensado nisso, mas uma vez que ali estou e ainda tenho sete pessoas à  minha frente,  porque não? – penso. Depois, medito um pouco e concluo que com a falta de humor que estes individuos tem, isso poderia fragilizar  ainda mais a minha situação naquele estabelecimento, dito de saúde mas que na verdade é de  espera. 

E depois penso que se calhar até estou a ser injusta. Porque isto acaba por ser muito mais inspirador do que ir  para um cafézinho bonito. Nunca num café teriámos a sorte de encontrar uns catálogos, muito  bonitos e muito bem  feitos com raparigas felizes a dar saltos no ar com títulos como “dores menstruais  – o que posso fazer?”. Abro o precioso exemplar numa página ao acaso e leio: “Nunca deverá substimar as dores menstruais.”                                                                                        No comments.

No meio da minha emplogada e superficial leitura, um outro filme interrompe o desfile dos meus pensamentos existenciais e  humor cínico.   É uma senhora.  Desloca-se com muita dificuldade e é amparada por dois médicos num ritmo vagaroso,  pesado e  dorido. Tem o sofrimento estampado no corpo e os olhos muito molhados. 

Eu também fico com os olhos molhados e penso em abraçá-la.

sábado, 12 de janeiro de 2008

Viva a burrocracia ou à procura de Gogol


Não percebo e nem vamos tentar entender, está bem?”

 Foi esta a frase com que a menina do centro de saúde sentenciou a minha inexplicável situação, quando  simplesmente solicitava usar o meu direito á sáude e tentava marcar uma consulta.                            
 Com a simpatia, humildade e generosidade que geralmente carateriza este tipo de serviços, ela olha para os papéis  que solicitamente lhe entrego.
 Perplexa e absorta, começa a alternar o seu o olhar entre o computador, os papéis e eu. 
 A sua  indignação é tanta que não aguenta e chama a colega: “Ó Rosário, anda cá ver isto!!! … eu não  percebo….mas que confusão!!! Francamente!” e vai atirando assim umas larachas que comprometem seriamente a  minha dignidade como cidadã responsável.
 Como se não bastasse, à minha volta uma sala inteira cheia daqueles seres estranhos que costumam habitar os  centros de saúde, olham-me como se a estranha fosse eu.

 E a senhora continua a bombardear-me com perguntas idiotas, às quais eu – ainda sem café e com o terrível  pressentimento de que estou destinada a passar um dia inteiro nestas instalações, sujeita a este tipo de  humilhações mundanas mas profundas – tenho alguma dificuldade em responder.
 O meu humor começa então em queda livre e já só me apetece bater com o pé no chão enquanto choramingo (qual  criançinha de 4 anos) : “não, não é a primeira vez que cá venho!! (…) sim, moro em Telheiras mas a médica  aceitou-me aqui!” (…) “nãaaao!!…. não pedi o cartão de utente depois de me ter inscrito aqui!"

 -   Se calhar foram os seus pais que a inscreveram em Aveiro…- afirma com um ar que roça o acusatório e o  pidesco.

 Depois de estar há 15 minutos a aturar esta tortura, já desabafo “…. sim… se calhar foram eles….” (Ó meu Deus,  agora para além de má cidadã sou também delatora!!.. Desculpem paizinhos!!!!)
 E ela continua, blábláblá, blábláblá e isto e mais aquilo e debate-se e arranja argumentos e pesquisa no computador  e pergunta coisas da minha vida pessoal (tipo “onde é que estava em 1999?) ”…                                              
 Bem, de facto não a posso acusar de não ser persistente, mas a mim começa a cansar-me a sério.              
 Já  com o ego descaído e já quase convencida de que sou uma reles cidadã, ainda tento desculpar-me na tentativa  de conquistar a sua compaixão: “Sabe.. é que vivi em muitos sítios…”

 Nada.  
 Apenas um rápido olhar de desprezo e volta a olhar ora para o computador, ora para os papeis, ora para a colega do  lado (a Rosário, portanto).  
 No fundo entendo o seu interese pelo meu caso.      
 Trata-se de um caso complexo, com informações contraditórias e irregulariedades administrativas: a minha ficha  diz que estou inscrita em Benfica, o meu cartão de utente ( que orgulhosamente exibia, porque tinha descoberto a  sua existência apenas há uma semana) diz que estou em Aveiro, no computador dela o meu número corresponde a  uma tal Maria do Patrocínio e eu tenho a certeza que ela anda a ver demasiados CSIs na televisão…

 É o que dá…! E por causa disso tenho eu de aguentar com máquina burocrática destruidora com aparência  humanóide (como diria o meu amigo Hélder..), a maçar-me e a encher-me de perguntas só porque quer ser o Dr.  House das Auxiliares Administrativas dos Centros de Saúde da Europa! ( e está claro que ao português estas  denominações que acabam em europa ou mundo, soam-lhe sempre a pomposo!)

 E diga-se de passagem que vai no muito bom caminho, pelo menos a avaliar pela sua potencial capacidade de  antipatia e intolerância….

 "Não percebo e nem vamos tentar entender está bem?”

 Está bem.

 Eu saio de lá ainda mais pobre. Enxovalhada, sem identidade, sem convições, devastada pela justiça dilacerante  do serviço nacional de saúde, sem um terço dos papéis que levava e sem a última e orgulhosa prova da minha  cidadania: o meu cartão de utente. E como se nada fosse, elimina-o bárbara e implacávelmente numa máquina  destruidora parecida com ela mas com aparência mecanóide.

 E ainda por cima querem que eu me chame Maria do Patrocínio !?!        

  Irra que é demais!!!